3ª Turma do STJ permite acesso à herança digital sem autorização do falecido
Por: Marcela Villar
Fonte: Valor Econômico
A 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu ontem que herdeiros
podem acessar bens digitais armazenados no computador de falecido, cuja
senha não tenha sido fornecida, para a realização do inventário. Em julgamento
longo e acalorado, os ministros criaram a figura do “inventariante digital”,
que terá o dever de acessar os aparelhos e identificar quais ativos podem ser
transmitidos.
O inventariante digital é uma espécie de perito especializado que vai categorizar
os ativos encontrados. Os que violam direitos da personalidade e intimidade do
falecido não podem ser repassados, por ir contra a Constituição Federal. O
deferimento do acesso dos conteúdos será determinado pelo juiz do inventário.
É a primeira vez que o STJ analisa o tema e é um importante precedente sobre
herança digital, principalmente pela falta de regulamentação no Brasil. No
projeto de lei que reforma o Código Civil, em trâmite no Congresso Nacional,
é previsto esse novo conceito e quais ativos podem ou não integrar a sucessão
digital, mas ele não detalha o acesso após a morte do titular.
O caso trata do pedido de acesso a três iPads da família do empresário Roger
Agnelli, ex-presidente da Vale que morreu em acidente aéreo em 2016 junto
com seis pessoas: Andrea Agnelli, sua mulher, Anna e João Agnelli, seus filhos,
Parris Bittencourt (genro), Carolina Marques (nora) e o piloto, Paulo Roberto
Bau.
Os pedidos foram feitos pelas inventariantes — a mãe de Roger, Maria Waldeci
Agnelli, e de Andrea, Neyde Fabra de Azevedo Marques Trench — à Apple,
que negou a possibilidade de desbloqueio dos aparelhos. O caso em análise na
Corte tratava apenas do inventário de Roger Agnelli.
Prevaleceu, por maioria, o entendimento da relatora, a ministra Nancy Andrighi,
que tem uma tese de doutorado sobre o assunto. Na visão dela, nesses tipos de
processo, o juiz pode criar um incidente processual à parte para que sejam
analisados apenas os bens digitais. Esses ativos devem ser classificados e
avaliados pelo inventariante digital — que não representa o espólio, apenas fará
o trabalho de um perito, afirmou a ministra, devendo guardar sigilo sobre o que
encontrar (REsp 2124424).
A figura de um terceiro é necessária, segundo Nancy, porque podem existir
conteúdos nos computadores que violem a personalidade e intimidade dos
falecidos, cuja memória precisa ser preservada. Por isso, esse profissional fará a
distinção entre bens transmissíveis e intransmissíveis. “Serão intransmissíveis
todos aqueles bens que poderão ofender o direito da personalidade”, disse a
ministra.
Na visão da relatora, não é um caso apenas de “pedir para oficiar a plataforma
que informe os bens que estão na máquina”. “Não basta isso, porque a
plataforma poderá cometer um crime se abrir e divulgar fatos que ofendem a
personalidade da falecida ou de terceiro”, afirmou. Como exemplo, cita a
possibilidade de encontrar informações sobre relacionamentos afetivos ou
orientação sexual do falecido que a família desconhecia.
Por isso, é preciso separar quais bens digitais são possíveis de integrar o
inventário — os de natureza patrimonial. Ela mencionou a relevância do caso,
diante do “vácuo legislativo”. “Muitas pessoas estão perdendo bens digitais,
porque não temos lei que explique, determine e regulamente a forma de acessar
essas máquinas que ficam sem a senha”, acrescentou Nancy. Ela determinou o
retorno dos autos ao juiz para abrir o incidente e apurar os bens digitais.
Divergiu o ministro Ricardo Villas Bôas Cueva. Para ele, é possível dar acesso
e fazer a transmissão integral dos bens digitais, baseado no princípio da sucessão
universal. Segundo o ministro, não há diferença entre os ativos virtuais e os
“analógicos”. Ele citou decisões e legislações de países da Europa e Estados
Unidos. “Há clara tendência no plano internacional favoráveis à transmissão do
acervo digital aos familiares e herdeiros”, afirmou.
Segundo o professor Marcelo Mazzola, que escreveu o prefácio do livro de
doutorado da ministra Nancy sobre o assunto, o julgamento repercute em todos
os processos de inventário do país. “A ministra ressalta, no voto, que em um
cenário tecnológico, é preciso repensar a mitigação desse princípio de que os
bens físicos são transmitidos automaticamente quando a pessoa morre, porque
dentro dos bens digitais podem ter informações e documentos sensíveis que
violem o direito de personalidade”, diz.
O advogado Felipe Russomano, sócio do Cescon Barrieu, descreve o
julgamento como histórico. “Fica clara a importância que ela dá à privacidade e
intimidade do falecido”, afirma. Ele acrescenta que é possível haver uma
divergência sobre a perícia feita e deve ser preservado o contraditório nesses
casos. “É preciso garantir que esses herdeiros possam se defender se houver
discordância se determinado bem é transmissível ou não.”
Aluizio Cherubini, advogado que representa a inventariante Maria Agnelli, diz
que os dois votos proferidos no STJ são coerentes e não deve recorrer, apesar
de entender que não seria necessário o incidente processual. “Entendemos que
a medida era possível de ser concedida dentro do inventário porque não haveria
alta complexidade da matéria”. O interesse pelos iPads, diz, é talvez obter
informações relevantes ao inventário, pois os aparelhos eram usados pela
família para fins profissionais e pessoais.
O advogado Bruno Batista, sócio do Innocenti Advogados, diz que o
precedente reforça a importância de o planejamento sucessório ser feito em
vida, com a possibilidade, inclusive, da indicação no testamento de quem será
o “inventariante digital” e o nível de acesso e gestão que poderá ter sobre o
acervo.
“Caso contrário, corre-se o risco de o juiz nomear esse inventariante e iniciar
uma devassa nos arquivos digitais, o que aumenta a delicadeza da situação, dada
a dificuldade em distinguir legalmente entre ativos patrimoniais e informações
pessoais íntimas”, afirma Batista.